sábado, 15 de novembro de 2014

ACENDA UMA VELA


De vez em quando, revejo textos, crônicas ou poemas preferidos. Desta vez, coube a Jorge de Lima fazer a minha alegria. Tirei da estante Poesia Completa e, sem surpresa, vi que estava marcada a página do soneto O acendedor de lampiões, meu preferido. Reli e fiquei pensando na primeira estrofe (Lá vem o acendedor de lampiões da rua! Este mesmo que vem infatigavelmente, Parodiar o sol e associar-se à lua Quando a sombra da noite enegrece o poente). Energia elétrica nem pensar. As ruas, escuras, dependiam desse homem, que caminhava, caminhava e, infatigavelmente, iluminava as cidades.
O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, também fala do acendedor de lampiões. Só que seu planeta era tão pequeno que ele, mal acendia, tinha que apagar depressa a luz, porque já era dia. E nem podia dormir. Limitava-se a acender, apagar, e repetir, incansavelmente Bom dia, Boa noite, cumprindo o regulamento que não mudava nunca, apesar de o planeta ter mudado e começado a girar mais depressa. Era fiel ao regulamento. O Pequeno Príncipe, depois de fazer perguntas e mais perguntas, sugerir atitudes ao acendedor, concluiu: Esse aí seria desprezado por aqueles outros, pelo rei, pelo vaidoso, pelo beberrão, pelo empresário. No entanto, é o único que não me parece ridículo. Talvez seja porque não se preocupe apenas consigo mesmo.
A minha cidade natal tinha uma usina hidrelétrica, moderna para aquela época, naquele fim de mundo, mas com sistema manual. Aí, precisava do acendedor de lâmpadas. Chamava-se Manoel e tinha o apelido de Manoel da Luz, porque ia de rua em rua, com um grande bastão, na ponta um interruptor, acendendo as lâmpadas da Cidade. Mal insinuadas as sombras, lá vinha o Manoel da Luz, equilibrando-se em sua bicicleta Um dos nossos deleites era vê-lo, com toda perícia, sem descer da bicicleta, cutucar o poste e, como seu bastão mágico, fazer brotar bela e longa claridade, como a luz da lua.
Jorge de Lima diz, na penúltima estrofe do soneto: Triste ironia atroz que o senso humano irrita: Ele que doira a noite e ilumina a cidade, Talvez não tenha luz na choupana em que habita. Talvez, mas concluo, com o Pequeno Príncipe, que esse acendedor de lâmpadas também não pensava em si mesmo, cumpria seu dever de iluminar a cidade, com chuva ou sol. Por isso era tão querido pela população.
Em Mateus 5, 14-16 está escrito: “Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre uma montanha nem se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que brilhe a todos que estão em casa. Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus”.
Não seriam esses acendedores um símbolo do cristão de que fala Mateus? Com seu trabalho incansável traziam alegria, porque traziam luz. E não pensavam em si, mas na tarefa que deveriam realizar, com cansaço ou com chuva, lá estavam eles, produzindo a magia de afastar as trevas.  Aqui, vale a simbologia da frase que li faz tempo: Não grite contra a escuridão, acenda uma velha.  E nós nem precisávamos gritar, tampouco precisávamos de velas. Tínhamos nossos vagalumes humanos, nossos mágicos da luz que nos impulsionavam à alegria.
Fico pensando nisso tudo e questiono a mim mesma, onde colocar uma vela, após essa avalanche de denúncias mal ou bem formuladas, esclarecidas ou não, verdadeiras ou não, e após uma eleição, em que se viu tanto ódio? Alguém verá? Terá força? Temos, hoje, acendedores de lampiões?

Maria Francisca – outubro de 2014.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O MENINO, A CHUVA E O PÃO



Acordei às seis da manhã, abri a janela e vi que o dia nascera muito claro. Chegando à portaria, surpresa, uma grossa chuva dava os últimos suspiros, com pingos salteados, obrigando transeuntes madrugadores a usarem capuzes ou guarda-chuvas. Lembrei-me do poema Caso pluvioso de Drummond (“Era chuva fininha e chuva grossa, matinal e noturna, ativa… Nossa!”) e ri sozinha, quando me lembrei de que no poema ele diz que descobriu que Maria é que chovia. Será que era eu que chovia? Está sempre chovendo nos meus dias...
No calçadão, vi que o sol se esgueirava aqui e acolá, como a fugir de algumas nuvens grossas. Parei uns instantes, a tempo de contemplar os ralos faróis dourados caindo sobre o mar.
Continuei meu trajeto, pensando nessa natureza tão versátil e tão volúvel. Ora chove, ora faz sol. Como os humanos. Ora somos tristes, chuvosos, ora somos o próprio sol, ofuscando de brilho ou tisnando na quentura.
Pensando nisso e já retornando, vi um novo cenário. O céu ficou escuro, a chuva chegou em cântaros e a enxurrada engrossava os ralos de águas pluviais, os carros, em desabalada correria, jogavam água nos pedestres e todos fugindo como podiam.
Vi um menino correndo, gargalhando, e metendo-se por um portão de uma daquelas portarias elegantes da Praia da Costa.
Comecei a pensar num menino que vira na véspera, na chuva. Noite alta, festa acabando, chuva caindo, um menino ensopado e um guarda-chuva cedido em troca de algumas moedas. Era magrinho, muito bonito e sorria. Nem pensava no resfriado que poderia sofrer depois, nem sentia o frio que fazia naquela chuva, nem via que estava todo molhado. Só pensava nas moedas. Precisava daquelas moedas. O pai sumiu no mundo, a mãe acamada, irmãos pequenos, as moedas, sim, as moedas seriam o pão na manhã seguinte, quem sabe o leite, o café, quem sabe ganharia mais, quem sabe, quem sabe...
E todos queriam o guarda-chuva do menino. Ele já estava molhado mesmo! Ah! Quer uma moeda! Uns: Aqui, menino!  Outros: Pena, não tenho nada. O menino contou suas moedinhas, recontou e viu que perdera uma, na corrida de volta dos carros para ceder o guarda-chuva para mais uma pessoa. O último vai saindo. Quem sabe vou ganhar mais uma, pensou. E ganhou: vinte reais. Vinte reais! Que maravilha... O pão e o leite garantidos...
O dia já ia raiando. O menino foi-se. Teria passado na padaria? Teria ido pra casa? Teria ido dormir?
De repente, vi-me parada no calçadão e toda molhada. Voltei pra casa depressa, fincando o pé no chão, bem forte, antes que outros meninos pobres ou ricos, sorridentes ou tristes, viessem tomar conta de meu dia.
Maria Francisca – outubro/2014.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

ONDE ESTARÁ PEDRO?

Como homenagem ao dia da criança, posto este poema, desejando que um dia todos os Pedros do Brasil tenham seus direitos garantidos pela Constituição Federal e possam crescer saudáveis e felizes.
 
Trata-se da história contida na revista "Trabalho Infantil" da ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho). É de uma criança chamada Pedro, de uma família muito pobre, que era bom aluno, mas, de repente, começou a faltar às aulas, perder notas,  sempre triste,  até que parou de ir à escola. Aí, as crianças, perguntam:
 
“Onde estará o Pedro?
Por onde andará?
Não veio à escola. Na sua casa não está.
Dizem que está nas ruas,
Vendendo balas nas esquinas
Sabor laranja, morango e limão...
Frutas colhidas nas fazendas
Por mãos pequeninas
De centenas de meninos e meninas.
Perguntamos: Onde Pedro está?
Mas, também, onde estará Maria, Cristina, João...
Trabalhando no campo? Na cidade? Ou no lixão?
São crianças invisíveis aos olhos de muita gente grande.
Não enxergam suas idades,
Maquiam de bem a maldade.
Ainda pequeninas começam a trabalhar
Enriquecendo uns poucos nos campos e nas cidades
Prejudicando quantos Pedros?
Por isso terminamos repetindo a pergunta:
Onde ele está? Por onde Pedro andará?”
 
 
 

domingo, 28 de setembro de 2014

UM MISTÉRIO E UM PERIGO: VIVER


A placa ainda está lá. Só não brilha mais.
As portas fechadas mostram o vazio que se instalou na casa. Banners, tapando a varanda e impedindo a entrada do ar e do sol, não escondem a tristeza que ainda deve reinar no coração de quem avista aquela placa e, principalmente, no coração da família.
Ali, era tudo alegre e bom. O dono, jovem, mostrava vigor e otimismo que, num átimo, apagou-se para sempre. Filhos esperavam-no ao fim do dia.  Ele não chegou. Ninguém sabia o seu paradeiro. Só o vento e o mar poderiam dar a resposta.
O vento, com seu canto noturno e soturno, ajudou a arrastá-lo para longe, bem longe, onde a vida terminava aqui e começava noutro lugar, talvez mais belo, talvez mais humano, talvez mais alegre, talvez mais feliz.
Ninguém pode entender uma pessoa que tira a própria vida, se “a medida do homem é a vida”, como disse João Cabral de Melo Neto, em belo poema. Ninguém sabe o que vai no coração e na alma: o sofrimento deve ter sido muito grande, maior do que poderia suportar... Ou seria a desesperança?  Ou, quem sabe, um momento, um momento só, de loucura? Só Deus para saber.

Ítalo Campos, psicanalista e poeta, num ensaio para o caderno Pensar de “A Gazeta” ( 19.04.2014), busca respostas para o ato final escolhido por muitos que caminham ao lado da arte, porque, segundo ele, o escritor ou  o pintor livram-se de seus males provocados pela crueldade do mundo, lidando com um mundo idealizado, misterioso, longe de nosso alcance, por serem mais sensíveis. Então, como explicar suicídios de grandes autores, como Hemingway, Virgínia Wolf, Florbela Espanca e tantos outros? E acrescenta que é perfeitamente normal nós, insensatos e, em contato com alguma tristeza ou perda irreparável, pensemos na morte como saída, mas não chegamos a praticar o ato.
Mas muitas chegam ao ato. Penso que a arte não dá conta desse mistério insondável, além de perigoso, como disse o Diadorim, de Guimarães Rosa.   E todos podem passar por maus momentos e não conseguir suportá-los. Tanto artistas como pessoas comuns são vulneráveis.
Li, certa vez, não sei bem se em Hermingway, logo ele, que pôs fim à própria vida, que um homem estava indo furtar ovos num quintal. Perto do lugar em que pularia o muro, havia uma enorme árvore e, sobre ela, um homem, prestes a se enforcar. Já tinha a corda enlaçada ao pescoço.  Aí, nosso primeiro personagem disse ao possível suicida: Que é que está fazendo aí? E ele: Vou me enforcar, porque não tenho mais esperança. Ao que o interlocutor respondeu: Deixe de mentira, se você vai se enforcar é porque acha que morrendo vai ser melhor. Então, você tem esperança, sim. Desça daí, já! Venha me ajudar! E o homem, obedientemente, desceu da árvore. Oxalá, as coisas pudessem acontecer como na ficção, mas é um exemplo de que ninguém sabe o que move um suicida.
Albert Camus afirma, em “O mito de Sísifo”, que a questão é saber se a vida vale ou não vale a pena ser vivida. E, por isso, muitas pessoas morrem: acham que a vida não vale mais a pena. E pessoas outras há que morrem por uma ideia, diz o escritor, uma ideia que lhes dê razão para viver. Ou seja, a ideia que é a razão de viver é a mesma que dá razão para morrer. Será que alguém reflete antes de cometer suicídio? Ou: há suicídio premeditado? Pode haver, quem sabe?
Há poucos dias, perdi um colega. Suicídio, contaram. Era jovem, bonito, culto, talentoso, poeta, fotógrafo. Tinha tudo para viver bem. Dizem que estava deprimido e sofria muito. Nada sei, ao certo. Sei que a vida, por si, já é um sofrimento. As brigas, as guerras, o tráfico, a pobreza, a corrupção, as drogas... Para as pessoas mais sensíveis, então... Drummond diz, num poema, que os delicados prefeririam morrer.
Já o jovem do início do texto os jornais noticiaram que se envolveu em situação embaraçosa de corrupção e estava denunciando os corruptos por meio virtual. A pressão foi tanta, que ele não suportou. A corrupção, essa praga que assola o mundo todo, e nosso País, principalmente. Não sei se é verdade. Só sei que algo barrou esse caminho, como o caminho do meu amigo, que poderia ser iluminado, e iluminar a vida de muitos com sua arte, sua vida e seu trabalho. E a pergunta se renova: Por quê? Só Deus poderia dar a resposta. Ninguém mais.
Com meu turvo olhar sobre o mundo falo com Drummond, mesmo sabendo que nada, nada mesmo, nesta vida, é definitivo:
“Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.”

 

Maria Francisca – início de maio de 2014.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

VEJO COM OUTROS OLHOS


“Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra. Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou’”. 
Esse texto está no primeiro capítulo da Bíblia, na descrição das origens da humanidade e, numa interpretação fundamentalista, trata-se de uma verdade histórica, independentemente do fato de que em todas as culturas existam mitos que relatam a criação. Verdade histórica, ou não, fato é o que cremos, como cristãos: o mundo foi criado por Deus. O homem não só foi criado por Ele, mas criado à Sua imagem e semelhança.
Cada dia mais, vemos o poder do homem. Esse poder que vem de Deus, da inteligência, do raciocínio, da criação de tantas coisas belas em favor da humanidade e, infelizmente, de coisas feias também, que destroem, que matam.

Mas vamos falar de coisas belas. A medicina e o progresso da ciência. Os medicamentos, os aparelhos sofisticados para detectar doenças, as vacinas contras as mais diferentes endemias, os aparelhos que ajudam paraplégicos a andar, desde os mais elementares, a cadeira de rodas, o andador, como aquele  mais sofisticado apresentado na abertura da copa do mundo.

Esses dias, vi uma reportagem que me encheu os olhos.  Uma universidade do Nordeste criou um sensor que ajuda cegos a detectar objetos à sua frente, possibilitando-lhes uma caminhada sem os perigos comuns das ruas, como calçadas nada cidadãs, degraus, orelhões de telefone etc. Localiza-se um sensor na aba de um boné e um em cada extremidade da bengala.  Trata-se de uma tecnologia baseada no sensor dos morcegos. Esses animais se orientam no escuro por um mecanismo chamado ecolocalização ou sonar dos morcegos. Segundo pesquisa da EMBRAPA, esses animais emitem gritos, que consistem em ondas de altíssima frequência, inaudíveis pelo homem, emitidos pela boca ou pelas narinas. Esses impulsos de ultrassom, ao atingirem um objeto, são refletidos em forma de ecos e captados pelos ouvidos. Com esse sonar, os morcegos conseguem identificar, quando voando, a natureza do ambiente que os circunda, bem como a forma e a dimensão do objeto. Olhando, a bengala é uma coisa simples, mas é, sem dúvida, uma das maravilhas criadas pela inteligência do homem, a serviço do homem. Melhor ainda, uma tecnologia barata, que pode ajudar inúmeras pessoas.
Por que estou me lembrando disso, hoje?  Porque me submeti a uma cirurgia de catarata num dos olhos, e catarata e astigmatismo no outro, com substituição do cristalino por uma lente intraocular multifocal. Já no dia seguinte, observei a diferença na visão. Penso que o mais incrédulo dos homens dá Graças quando sente tal mudança na forma de ver o mundo. Uma clareza que espelha a grandeza de Deus e sua criação. A minha atitude não foi diferente no dia seguinte à primeira cirurgia: Levantei os braços aos céus e agradeci comovida a minha clara visão, sem óculos e sem lentes de contato. Agradeci a Deus a perícia, a gentileza e o cuidado, com que brindou o Dr. Sebastião Leonardo, o oftalmologista, um vocacionado para a profissão. Eu, que gosto tanto de ler e escrever, mesmo usando óculos ou lentes de contato no grau correto, estava com dificuldade para enxergar.  Não é para louvar a Deus?
Entretanto, não posso me furtar a mais uma reflexão. A tecnologia das lentes, infelizmente, ainda não abrange a massa de pessoas. O preço é altíssimo. Somos todos iguais, mas como disse Orwell, uns são sempre mais iguais. Essas maravilhas criadas pelo homem, criado à Imagem de Deus e, portanto, poderoso, são acessíveis  apenas a uns, os mais iguais como eu.  Ainda temos um Brasil dividido em dois países. No dizer de Suassuna, recentemente falecido: “É muito difícil você vencer a injustiça secular que dilacera o Brasil em dois países distintos: o país dos privilegiados e o país dos despossuídos”.
Como Deus é poderoso, o homem, criado à sua imagem e semelhança, também é poderoso. Então, podemos ter esperança de um dia, termos um, apenas um, grande e belo país.

Maria Francisca – agosto de  2014.

 

 

 

 

 

domingo, 17 de agosto de 2014

SEM MEDO



São cinco horas de um dia de inverno.
Os dedos já no teclado do computador, abandono rapidamente o trabalho mal iniciado, resolvo ver o nascer do dia e fico de tocaia na varanda. Está frio. Aquele ventinho do mar me provoca um leve arrepio, mas dali não arredo pé. Ainda está escuro, mas os raios de fogo na barra do céu anunciam a chegada da manhã.

Do décimo andar, olho por cima dos edifícios.  As luzes de um navio ao longe parecem tremular. Dirijo o olhar para a rua e vejo o mar, ondulando, ondulando, e aquele barulhinho de ondas rasas, contínuo me dá vontade de descer, ir lá e molhar os pés naquela água gelada. Apesar do desejo, fui ficando por ali, em doce devaneio, atenta ao fluxo e refluxo das vagas.

Um carro passou veloz, o ruído feriu meus ouvidos e tirou-me a doce contemplação. Por que não vou caminhar um pouco, se desde as quatro estou de pé? Quantas vezes não saí a caminhar, ou mesmo a correr, entre quatro e cinco horas da manhã?

Não me é permitido. A vontade turva, esmorece, e o medo fala mais alto, quando me lembro dos assaltos e dos outros tipos de violência dessas nossas cidades, pequenas ou grandes. Nem as vilas do interior, tampouco as fazendas ou sítios são poupados. E, ali mesmo, inicio um meditar solitário, num questionamento vivo e contínuo: Que estamos fazendo com nosso mundo?
O que gera violência? Pobreza? Muitos dizem que sim. Pode ser. Vemos mendigos por onde andamos. Moradores de rua, à beira de praias, sob pontes e viadutos, onde vivem em condições sub-humanas. Sujos, comendo restos catados no lixo, muitas vezes, em total promiscuidade.  É possível aguentar uma vida assim? Procuram refúgio nas drogas. Ou vão para a rua justamente porque são usuários dessa horrível praga moderna e perdem tudo, a dignidade, inclusive. Ninguém sabe o que começou primeiro.

Padre Xavier afirma que ninguém nasce bandido. As pessoas se tornam assim, segundo ele, a partir de um contexto de desamor, estrutura familiar, falta de apoio e, sobretudo, abandono nos primeiros anos de vida, da concepção à adolescência.

A pobreza pode produzir a violência, sim, mas, muitas vezes, porque a vida está vazia, sem perspectivas, sem rumo. A indigência não é somente de bens materiais. É de tudo.
Nossos meios de comunicação nada mais fazem do que incitar gastos, oferecendo todos os tipos de produtos. Empréstimos variados, sem exigência de cadastro, até para quem está denunciado no SPC, como alardeiam certas propagandas televisivas. O locutor é bonito, sorridente, encanta o público e vende a imagem de poder. É tudo muito rápido. Corra buscar seu empréstimo, dizem, subliminarmente. Pensar não se pode. Não dá tempo.

Há poucos dias, os jornais estamparam matéria em que a mãe chorava porque o filho, adolescente, fora apreendido, por assalto à mão armada. Ele disse que queria comprar um tênis. Ela, uma faxineira, havia prometido comprar o tal tênis do desejo, que custava cerca de 400 reais. Uma faxineira. Nada se disse sobre a escola desse adolescente, sobre a família, sobre esse desejo de ter aquele tênis caro, nada. Só que ele queria o tênis. Dessa forma, parece lícito roubar, simplesmente para suprir um desejo. Não importa se o bem que se pretende obter é necessário ou supérfluo. Importa ter, ter.

Diz Gilberto Dimenstein que “[...] a educação é o grande movimento abolicionista contemporâneo. É ela que garante a autonomia das pessoas, não existe forma mais grave de escravidão que a da ignorância [...]. E isso forma um círculo vicioso. Não tem boa educação, não vai ter um bom emprego, não vai conseguir dar uma boa educação para os filhos e não consegue pressionar mais pela educação”. E fala mais: “O grande papel da educação é gerar seres autônomos. Não é gerar indivíduos que saibam matemática, química e física. É gerar pessoas capazes de saber o que elas querem fazer de sua vida.

Isso é o que se chama consciência. Consciência da própria força. Consciência de que o mundo não vai acabar porque não se tem um tênis da moda. Consciência para optar entre o ser e o ter. Ou só ter o que é necessário. Consciência de que deve exigir do Poder Público o que lhe é de direito. Mais educação para todos, mais cuidado com a saúde, com os idosos, com as crianças, com o trânsito, com as ruas, com a limpeza e tudo o mais que é de responsabilidade do Governo, e ele não cumpre. Consciência para cuidar do espaço em que se vive e que é de todos e para todos.

Saint-Exupéry, em Piloto de Guerra, diz o seguinte: “É fácil formar um homem que se subordina cegamente, sem questionar, a um mestre ou líder. Por outro lado, libertá-lo, para que aprenda a ser mestre de si mesmo, é uma empreitada muito mais difícil.”

Não sei se tenho razão. Penso que, se todas as nossas crianças tivessem escola adequada, educação, com certeza, nosso mundo não seria este. Ensinar a pensar é, realmente, o maior desafio de nossas escolas, para que as crianças saibam escolher a vida que desejam levar, o caminho que desejam seguir. Assim, não correriam o risco de ser levadas por mãos inescrupulosas.

Esse é apenas um pensamento de quem não conhece muita coisa, apenas observa o que ocorre ao seu redor e o que dizem os especialistas. Com efeito, diz o Livro da Sabedoria: “Os pensamentos dos mortais são tímidos e suas reflexões incertas, porque o corpo corruptível torna pesada a alma e a tenda de argila oprime a mente que pensa.”

Por fim, espero um mundo, sem medo, onde eu possa sair de madrugada, molhar os pés no mar gelado, apreciar as ondas em contínuo fluxo e refluxo, sentir as gotículas salgadas saltando no meu corpo ou maravilhar-me com o sol brotando do mar, com toda majestade. Utopia?  Pode ser. Se esse pensamento for inútil, vale a lembrança de Galeano para quem a utopia na minha vida serve para que eu não deixe de caminhar.
 
Maria Francisca  -  agosto de 2014.

 

sábado, 9 de agosto de 2014

A vingança de Mike


Escuto, leio e vejo muitas histórias sobre cachorros, principalmente no que se refere à fidelidade. Esses dias, por exemplo, “A Gazeta” noticiou há algum tempo  fatos interessantes. A cadela Filhinha, “Num belo exemplo de fidelidade e amor, seguiu seu dono até o Departamento de Polícia Judiciária (DPJ) de Vitória, depois que ele foi preso por furto”. Segundo a notícia, a cadela acompanhou o carro da polícia por cinco quilômetros e ficou sentada, esperando, por 12 horas, na porta da delegacia. Outro caso, também noticiado pela imprensa, foi de Princesa. Ela teria ficado uma semana na porta de um hospital, a esperar por seu dono, que falecera, vítima de atropelamento. Em ambos os casos, as cadelas conseguiram novo dono, por adoção. Ainda bem.
O caso de Mike, entretanto, é singular.

Mike é um cachorrinho preto, pequenininho, muito paparicado por todos na casa onde mora. Marina, a dona, casou-se, mudou-se, mas, todos os dias, vinha à casa da mãe visitar Mike. E essa visita durava um tempão, porque Marina aproveitava para passearem juntos pelo calçadão da Praia da Costa, brincavam, corriam pra lá e pra cá e, no retorno, Mike ganhava sua bela ração, com todo o cuidado de uma dona carinhosa.

Marina ia para o trabalho, despedia-se de Mike, como se despede de uma criança. Ele ficava deitadinho no seu canto, cachorrinho educado que era, não incomodava, não sujava nada, nem latia sequer. Todos na casa gostavam muito de Mike.
Quando Marina estava muito atarefada e não podia sair a passear, era um tormento na casa. Mike, inquieto, começava a andar de um lado para outro, latindo, e, quando ninguém lhe dava atenção, deitava-se num canto e começava a ganir, numa tristeza de fazer dó.  Sua arma não falhava: alguém tinha que atendê-lo, fazendo as vezes de Marina. Isso sempre sobrava para o Marcos, o pai da dona do esperto cãozinho.

Certo dia, Marina, grávida, prestes a ter o filho, deixou de visitar o cachorrinho. Marta, irmã de Marina, implicada que estava com a atenção que davam para aquela, segundo ela, insignificante figura, chegou a casa e disse, bem firme, olhando nos olhos de Mike. Olhe, seu Mike: Vai nascer um bebê. Agora, você não vai mais ser o rei desta casa. Caiu do trono! He, he, he, he!  Todos vão se preocupar com Vitor, você não tem mais vez...

Mike ficou caladinho, deitou-se num canto e ficou ali a ganir, como se chorasse. Passou-se um dia e nada de Marina visitar Mike, passou-se outro e nada. Chegou a notícia do nascimento do Vitor. Todos falavam naquela criança, todos alegres, uma festa, um reboliço. Ninguém prestava atenção no Mike que vigiava a porta sem cessar. Qualquer movimento, ele levantava as orelhas, para, em seguida, abaixar o facho, como diria minha mãe.  E voltava para o canto.
Até que um dia, Mike acordou cedo e resolveu se vingar do seu ostracismo. Deve ter pensado, se é que cachorro pensa: Vamos ver se não vão me notar. Saiu correndo para a varanda que estava cheia de lindas e floridas bromélias do dono da casa e ali fez a festa. Subiu nos vasos de flores, arrancou-as uma por uma, saiu comendo o que sentiu que podia comer, derrubou os demais vasos, pisou em tudo, urinou no chão e voltou para dentro de casa, urinando em tudo que via e sentia, para desespero da família.

Não sei como a história vai acabar, porque, mesmo depois que passaram a dar-lhe mais atenção, Mike não se conforma com a perda do trono e continua a fazer estripulias pela casa.

Penso que deve estar esperando Marina chegar e dizer a ele que, mesmo com o nascimento do Vitor, ele continua muito amado. Será isso?
Pode ser, também, que Francisco de Assis, o santo protetor dos animais, segrede uns conselhos em seus ouvidos durante o sono e a paz volte a reinar na vida de Mike.

A ver.
Maria Francisca – agosto/2014.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

CAUSOS – 2º DA SÉRIE


VOGAL

Na Justiça do Trabalho, até 1999, além do juiz concursado e de carreira, havia juízes leigos, em todos os graus de jurisdição. Por isso, as atuais Varas denominavam-se Juntas de Conciliação e Julgamento. Esses juízes leigos denominavam-se vogais. Na Constituição Federal de 1988, eles passaram a ser denominados juízes classistas. Então, ficaram muito contentes, porque, segundo pensavam, igualaram-se aos juízes de carreira.  Isso mais se consolidava, na medida em que a imprensa, muitas vezes mal informada, quando tratava de um classista dizia simplesmente juiz do trabalho. Então, eles se aborreciam quando alguém os chamava de vogais.
Numa audiência em Belo Horizonte, depois de uma longa discussão sobre um acordo muito difícil, um classista se desentendeu com um advogado e ambos ficaram muito nervosos, necessitando de minha interferência para que a discussão não terminasse em briga. O acordo saiu, mas o advogado ainda estava muito bravo.

Ao sair da sala, lançou um olhar raivoso para o classista e disse, bem alto, como um xingamento: SEU VOGAL!
Todos riram e o advogado acabou por rir também, descontraindo o ambiente.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

SIMPÁTICO OU SIMBÓLICO?




  Hoje (7/2/2014), saí para minha caminhada matinal. A preguiça foi tanta que a caminhada não foi tão matinal assim. O sol já ia alto, forte e de uma quentura de amedrontar.  De repente, um ventinho frio arrepiou-me. Prenúncio de chuva, pensei. Andei algumas quadras sob aquele vento gostoso, providencial para arrefecer o calor que assola nosso bairro esses dias, quando uma chuva torrencial desabou.

O calçadão estava lotado. Num minuto, esvaziou-se. Uns se esconderam sob marquises, outros entraram em quiosques, alguns, sob enormes guarda-sóis, outros voltaram pra casa correndo. Enfim, todo mundo fugiu da chuva.
Eu, alegremente, continuei a caminhada, bendizendo aquela chuva maravilhosa. Toda ensopada, era alvo de alegres brincadeiras do pessoal fugido e escondido da chuva, ou seja, eram todos simpáticos. Por que seria, se nos dias anteriores, caminho, caminho, encontro n pessoas no trajeto, nem sequer um cumprimento recebo? Minha caminhada na chuva seria simbólica?
Interessante que eu me lembrei de que acontecia a mesma coisa quando praticava corrida. Ainda não era tão comum as pessoas comuns praticarem caminhadas ou corrida. As academias não eram “obrigatórias” como hoje. Só os atletas profissionais dedicavam-se aos exercícios físicos com afinco. Eis porque eu era sempre parada nas ruas, com brincadeiras, do tipo, vai, Joaquim Cruz!... Vai correndo assim pra onde? Está correndo da polícia? Ou parando o carro ou a bicicleta e oferecendo carona, na brincadeira. Uma simpatia só. E, muitas vezes, correndo na chuva, brincavam comigo, como hoje. Paravam para ver minha cara (acho que pensavam que eu era meio doida) e brincavam: Vai derreter! E quando participei de competição, então? Ganhei medalha de ouro na minha categoria, em corrida de rua de dez quilômetros, e todos me aplaudiam. Depois da competição, chegando ao clube, todos brincavam, riam, falavam comigo.
Simpatia é uma palavra de origem grega.  É formada pelo prefixo sym (juntamente, ao lado de, em favor de, ao mesmo tempo) e pathéia (aquilo que se experimenta em relação às paixões da alma). Então, simpáticas seriam pessoas que nos atraem e conquistam pelo seu carisma, pela sua personalidade ou pela sua postura diante da vida.
Segundo Padre Fábio de Melo (Quem me roubou de mim?), símbolo é toda e qualquer realidade que constrói uma ponte por onde podemos alcançar o outro lado. A palavra vem do grego, sym-ballein, que significa reunir, juntar. E o ato de reunir ou juntar, efetivamente, constrói pontes.
Aí, fui juntando os pontos, construí a ponte para entender por que todos faziam alegres brincadeiras comigo. Eu, naquele momento, era um símbolo. Símbolo talvez da coragem de enfrentar aquela ventania. A minha postura de correr na chuva conquistou aqueles caminheiros que ali estavam. Então, tornei-me simpática por estar fazendo algo inusitado e, ao mesmo tempo, um símbolo para aquelas pessoas que estavam escondidas da chuva.
É interessante observar que todos nós procuramos um ídolo, um símbolo. Seja de alegria, seja de coragem, seja de beleza, enfim, todos querem ser iguais a alguém.  Por isso, brincamos quando vemos alguma pessoa que, por um desses motivos, admiramos: Quando crescer, quero ser igual a você. É uma coisa boa, mas  perigosa, aliás, como tudo na vida. É que sobre a sociedade moderna paira uma sombra. A sombra da falta de identidade, a sombra da ausência de referências.
As crianças de hoje têm ídolos do bem? Mais uma vez, a questão da educação, uma das coisas mais importantes na vida. Pais que se preocupem com os filhos e professores que ensinem seus alunos a pensar, que lhes mostrem um mundo que pode ser do bem, mas que pode ser do mal, dependendo da escolha de cada um.  E só pode escolher quem pensa.
Voltando à minha ousadia, retornei a casa ensopada, mas com o coração leve, por ter tido a ventura de andar na chuva, quando todos fugiram e na sensação (já vem aí a vaidade assumida) de que fui símbolo por um dia, mesmo na minha velhice.

Maria Francisca, fevereiro de 2014.

 

 

 


sexta-feira, 11 de julho de 2014

CADÊ A COPA?



Mudou algo em sua vida?
 – Hã? Hã?
O vexame de ontem.
Ah, não! Não mudou nada.
Pois é.  Sigamos em frente...

Foram conversas que tive ontem, muitas vezes, nas minhas andanças pelo quarteirão, indo ao dentista, costureira, feira etc. O povo, perplexo. Reclamando sempre daquele fiasco da seleção. E eu, na minha, nem ligava. Queria que o Brasil ganhasse. O povo merecia isso, pelo menos, mas daí a ficar triste, eu, hein?
 
Há tanta coisa ruim no Espírito Santo, no Brasil e no mundo que é até um despropósito eu ficar triste porque o Brasil perdeu um jogo e a esperança do hexa.  Os jornais noticiaram, hoje, que um médico no ES precisa atender, em média, a cada 12 horas, 200 crianças. Não há pediatras. Os hospitais tanto públicos como privados estão sem plantão pediátrico por falta de médicos. Tem cabimento? Há escolas públicas onde as crianças ainda não receberam o uniforme. E estamos em julho. Outras escolas há onde alunos que estudam em regime de tempo integral não têm espaço dentro da escola.  Que tempo integral é esse?
 
 E eu ainda vou me entristecer com um timezinho que só pensa no dinheiro, não joga junto sabe-se lá há quanto tempo e, portanto, não pode ser uma equipe?  Além de tudo, apequenado pela falta de um jogador que se machucara e dá um “branco”, como reverberou o técnico? Será?
E há outra coisa: ano de eleição. Já imaginei o povo não dando bola pra mais nada depois do tal de hexa. Então, que se dane essa vontade de hexa. O povo não precisa de hexa. O povo precisa de educação, saúde, saneamento básico, alimento, atenção, fraternidade. Se essa alegria com o futebol não turvasse os demais objetivos, tudo bem, mas ninguém mais pensa em nada quando um jogo da seleção está em evidência. Por isso, já tachei o futebol de ópio do povo.
Quem falou que não ia ter copa? Os mesmos que criticaram estavam lá querendo ingresso, vestindo a camisa amarela e torcendo pelo Brasil. Torcer pelo seu país é característica de um povo que ama sua pátria,  mas não a ponto de virar a casaca dessa forma. Um dia, na rua, fazendo baderna, para não ter copa. No outro, cantando nas portas de estádios, esmolando ingressos.
 
E no dia do jogo do Brasil com Alemanha, nosso vexame maior, fui a diversos lugares. Parecia que o povo estava doido. Uma aflição...Tomei vários esbarrões no supermercado. Nem olhavam para pedir desculpas, como se tivessem esbarrado num cabo de vassoura. Os empregados mal-humorados, talvez porque não iriam ver o jogo em casa. Sabe-se lá.  O trânsito um horror. O nervosismo no ar.  É ópio ou não é?
Agora, parece que o povo acordou. A derrota para a Alemanha serviu pelo menos pra isso. Então, que a copa acabe depressa para o Brasil voltar à rotina.
Maria Francisca – julho de 2014.

sábado, 5 de julho de 2014

Pega Ladrão



Morei em Salvador durante certo tempo, num enorme condomínio no Bairro Caminho das Árvores. Era exatamente atrás do Shopping Iguatemi. Para chegar ao nosso prédio, passávamos dentro do shopping, subíamos uma escadinha externa, num morro, por puro comodismo, claro.
E aquela escadinha era ótima, porque, além de encurtar em muito nosso caminho, ainda nos proporcionava momentos de lazer, no shopping, na volta do trabalho. Muitas vezes, retornando cansada, entrava no shopping, para alcançar o atalho para meu prédio, quando me deparava com saraus, orquestras e ficava ali parada, apreciando tudo e chegava a casa descansada da lida, do transporte público e do trânsito caótico, já naquele tempo.

Pois bem. Eu exercia a função então denominada Fiscal do Trabalho. Num início de semana, ia eu tranquilamente subindo a rua para chegar a uma empresa na Praça da Sé, onde faria uma fiscalização de rotina. Segurava com força a minha pesada pasta com processos que teria que analisar e pastas e fichas de empresas que teria que visitar. Tudo em papel. Não vivíamos, ainda, a era virtual. Carregávamos papeis e mais papeis.

 Eis que de repente, alguém agarra a minha pasta, eu me viro e começo a lutar com o enxerido. Agarrei a pasta com as duas mãos. E ficamos ali um tempinho, medindo forças, ele começou a ter dúvidas se tomava minha pasta ou meu relógio, arranhava meu braço e o relógio nada de sair, até que se cansou e se mandou para meu alívio. Segui meu caminho, trabalhei e voltei para casa no fim do dia, em paz.
Alguns dias depois, Júnior, meu filho, na época com 13 anos, chegou a casa chorando, descalço, de cuecas e camisa do uniforme, apenas. No caminho de volta das aulas, outros enxeridos, desta feita, alguns adolescentes, tomaram-lhe a calça jeans, a mochila, o tênis e jogaram seus livros no matagal ali perto.

Mais alguns dias e eis que algo semelhante acontece com Gláucia, minha filha de 16 anos. Retornando da escola, subia a bendita escadinha atrás do shopping, quando outro enxerido, adulto, tomou-lhe o lindo relógio que trazia ao pulso.

E ficamos em estado de alerta, depois disso tudo. Imagine: em poucos dias, três assaltos. Sem lesão corporal, mas com lesão na alma, porque o medo instalou-se entre nós. E tratamos de encontrar um transporte para o Júnior para ele não ir a pé para a aula sozinho, cuidamos de ficar atentos naquela escadinha e alertamos os demais moradores para o que acontecia naquele trajeto. E ficamos sabendo que não éramos as únicas vítimas.  Então, olho aberto, falávamos entre nós.
Um dia, voltava do trabalho, com uma pasta nos braços e na mão direita uma bolsa quadrada de couro, cuja estrutura era de madeira. Uma malinha, enfim. Era por volta de 18 horas e já estava meio escuro, apesar da iluminação artificial, porque ainda estava naqueles momentos em que não era dia, mas também ainda não era noite.  Subia a escada, quando, olhando para o alto, vi um senhor sentado num dos degraus. Olho vivo. Hoje ele não me pega, pensei. Armei-me de toda a coragem do mundo, minha malinha como arma, em posição de ataque, a voz muda e a testa enrugada, pisava com firmeza os degraus, mirando fixamente o suposto ladrão.  A cada passo, uma ameaça para aquele que se intrometera no meu caminho daquela vez.

Fui chegando firme perto daquele homem e observei, com horror, que o homem estava com medo de mim. Minha expressão era tão feroz que causou espanto naquele que eu pensara ser um bandido. Ele se encolhia e, ao meu visor, estava a ponto de sair correndo.
Recompus-me, passei ao lado dele e, bem alto, cumprimentei-o, com um sonoro Boa noite! Nem esperei resposta e nem me lembro se a deu, e segui, rindo sozinha daquele meu disparate. O pretenso ladrão deve estar pensando até hoje que, naquele caminho, era sempre possível encontrar-se uma doida.

Maria Francisca – março de 2014. Sábado de carnaval.

 

domingo, 22 de junho de 2014

CAUSOS – 1º DA SÉRIE



                                                       AQUELA JUÍZA É O CÃO

Na Justiça do Trabalho, como nos Juizados Especiais,  quando o autor não comparece à primeira audiência, o processo é arquivado.

Corria o ano de 1994. Antes da lei 11.280/2006 que deu nova redação ao inciso II do art. 253 do CPC quando acontecia situação de arquivamento, o novo processo ajuizado era sorteado e poderia cair em qualquer Junta ou Vara. Então, era possível escolher-se o juiz, ou melhor, era possível, pelo menos, recusar, por vias transversas, um juiz que não se desejasse para atuar no seu processo. Era só deixar arquivar e esperar novo sorteio, quando entrasse com novo pedido.

Eu era presidente da então da 3ª Junta de Conciliação e Julgamento de Vitória, mas como antes trabalhava em Linhares e logo que vim para Vitória, passei a ser sistematicamente convocada para atuar no Tribunal, muitos advogados só me conheciam de nome e isso provocava situações engraçadas.

Um dia, estava eu no elevador bem lotado e um advogado conversava com uma senhora, que entendi ser sua cliente. E dizia: Quando chegarmos ao andar da Junta, entro na sala de audiência, para ver quem é o juiz que está atuando, porque se for a juíza Maristela*, faço um sinal e você se manda, porque aquela mulher é o cão.  Eu ali escutando e com vontade de rir, premeditando o assombro que causaria a ele, quando descobrisse quem eu era.

Aí, o elevador parou num andar, um advogado me viu e me gritou de lá: Dra. Francisca, que prazer vê-la aqui! O coitado do advogado que acabara de falar aquele disparate, nem olhou pra trás. Saiu atropelando todo o mundo e se safou porta afora para se livrar de olhar para mim.

Acredito que nunca mais ele vai falar qualquer coisa em elevador.

* Nome fictício.

 

 

Tem dono!

 
Céu encoberto por uma nuvem escura e o frio se faz sentir. Olho pela janela e vejo uma chuva fina já começando a cair, o que afasta a minha coragem para a caminhada matinal. Chuva não me amedronta, mas frio, sim. Então, já vou procurando colocar a bicicleta ergométrica na frente da televisão, para que eu possa me exercitar, sem estresse, uma vez que exercício aeróbico monótono não é comigo. Tenho que me distrair, enquanto pedalo.

Ligo a televisão e sintonizo no programa da Ana Maria Braga. Começo a pedalar e surge um quadro sobre uma mulher que deseja ser poderosa. Pensei: Opa! Quero ser poderosa também. Decepcionei-me, entretanto. O poder a que se referia a apresentadora era do ter. Roupas bonitas, cabelos cortados e de cor diferente. O poder de modificar-se, arriscar-se, mas apenas em relação à aparência. Quis ver o rumo daquela história e fui assistindo. A moça sendo acompanhada para compras. No cabelereiro, sendo instruída para arrumar o cabelo, maquiar-se, ganhando brindes da Avon, para se embelezar mais, carregando inúmeras sacolas de lojas e o final apoteótico: a mulher desfilando com roupas novas, cabelo cortado, bem cuidada e maquiada, à altura do título de poderosa. O marido da mais nova poderosa da TV disse ao Louro José: Ela é muito bonita e ficou mais bonita ainda, não é? Mas tire o olho, porque esta já tem dono.

Aquela palavrinha “dono” não me caiu bem. Incomodou-me aquela resposta do marido. A palavra empacou na minha cabeça. E, teimosa e reincidentemente, batia na trave.

Acabei meu exercício, a chuva caia agora copiosamente, o que me impedia de sair para as providências que desejava tomar naquele dia. Então, fui ler os jornais e, como sempre, muita notícia de violência contra as mulheres. Um companheiro havia dado três tiros na companheira, um outro, após bater bastante na mulher, trancou-a no quarto, mas ela conseguir passar um bilhete por baixo da porta e pediu socorro, outro, ainda, deu facadas na ex-mulher e, depois, ainda chorava diante dos repórteres.  E muitos outros casos estavam ali estampados. O jornal “SBT Brasil” noticiou (02/10/2013) que a cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil.

A ficha caiu. O problema é a palavra “dono”. O marido da poderosa, com certeza, nem pensou nisso quando proferiu a palavra, mas é isso que está na cabeça dos machistas, por mais que os tempos mudem, que as mulheres lutem por igualdade e consigam vencer nalgumas áreas. Continuam sendo propriedade dos maridos, dos companheiros, dos machos, enfim. Eu costumo brincar, dizendo que as mulheres nunca são livres. Quando estão solteiras, morando com a família, o pai toma conta como um leão; quando se casam o marido vigia até um espirro, quando envelhece, o filho macho toma conta. Eu, em verdade, falava isso há algum tempo, mas tudo foi mudando, minha geração fez tanta revolução, o feminismo avançou e me esqueci disso.

Uma amiga, que era muito independente, contou um caso interessante que aconteceu, com ela, depois de anos e anos de casamento. Ela estava meio pensativa, aborrecida com alguma coisa e calada, sentada num canto. O marido olhou-a e perguntou-lhe: Em que está pensando? Ela, aborrecida que estava, respondeu, raivosa: Em nada. Você já tomou conta do meu corpo, não vai tomar conta do meu espírito também não, viu?  Ela mesma achou graça daquela observação boba que fez e começou a rir. Ambos riram e o aborrecimento foi-se, mas demonstra, como nós, mulheres, ainda estamos sujeitas a essas cobranças, umas mais, outras menos. Liberdade para sermos o que queremos ser muito poucas mulheres conseguem. Em primeiro lugar, está a pretensão do companheiro, seu sucesso, sua carreira e ai daquela que não quiser segui-lo. Receberá todas as reprimendas da sociedade burguesa, conservadora e machista.

Mas o pior, mesmo, é a violência moral e física. Essa questão ainda não mudou muito, não. Ainda há aqueles que subjugam de tal forma a companheira que ela perde a subjetividade e mergulha numa dependência afetiva tal que, embora desrespeitada moral ou fisicamente, apega-se de tal forma ao agressor, que não consegue desvencilhar-se, mesmo com todo o sofrimento por que passa. O egoísmo travestido de amor, primeiro conquista, seduz, para, depois, usar a pessoa seduzida como se usa um objeto.

 Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, Eleonora Menicucci, Ministra da Secretaria Especial de Política para Mulheres afirma que a lei Maria da penha é um sucesso. A jornalista demonstra e a Ministra sabe disso, que muitos criticam a lei e sua inutilidade, mostrando que homicídios contra mulheres continuam da mesma forma, com o mesmo índice. Ela contesta a crítica e diz o seguinte: “Temos uma cultura patriarcal muito forte, da posse do corpo da mulher. As mulheres tinham dificuldade de romper esse ciclo de violência porque não tinham a porta de saída, que é a autonomia econômica, a possibilidade de entrar no mercado de trabalho. Agora elas têm, e têm também o aparato legal para combater a violência. Mas não se muda uma mentalidade de quatro séculos em sete anos. A lei não faz milagre. Mas a Maria da Penha é um "chutezinho" para o começo do fim da impunidade”.  

Se é só um “chutezinho”, como pode ser um sucesso?

Já havia encerrado esta crônica quando leio no “A Gazeta”( 04/04/2014) um artigo de Marlusse Daher, sob o título “Ainda uma falácia”, justamente para falar da “famosa” lei Maria da Penha que, segundo a autora, não trouxe qualquer novidade, “botou a boca no trombone, mas o trombone não soa, lá onde mora Maria de Qualquer Santa, que mora com os filhos, que é adepta da economia solidária”...” e teve sua casa invadida pelo ex-marido, espancada por ele, viu os filhos terem igual sorte e ainda debochar de todos.”

Pois é. A Lei Maria da Penha aí está, delegacias da mulher foram instaladas, o famoso botão do pânico foi criado e alardeado por jornais, revistas, televisão. Até ganhou o prêmio Inovare da Associação dos Magistrados Brasileiros. A violência continua, entretanto. O Brasil do imaginário, de leis bonitas, desconectado do Brasil real, ainda perturba nosso sossego, não sabemos por quanto tempo.

Pelo menos no que diz respeito à igualdade, em que pesem as conquistas femininas, muito homem ainda continua agindo como se fosse dono da mulher. Verdade incontestável.

Ô, sina!

Maria Francisca – outubro de 2013.

 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

O espelho, a face e os cabelos


O espelho, a face e os cabelos.

 
Hoje fiquei um tempão pensando na Cecília Meireles. O que, aliás, não é novidade alguma, porque, com ela, comecei a gostar de poesia, recitando: “Troc…  troc…  troc…  troc…ligeirinhos, ligeirinhos, troc…  troc…  troc…  troc…vão cantando os tamanquinhos…” Para completar, a bela Cecília é minha patrona na Academia de Letras de Vila Velha. 

Hoje, pensei mais, porque estava me achando horrível. Meu rosto, meus cabelos, tudo feio. Ia num espelho, credo! Ia noutro, credo! Eu estava a ponto de achar, ao contrário de Narciso, feio o espelho. Até que achei um daqueles pequenos, meio no escurinho, onde fiquei menos feia e me conformei, aliás, fiquei feliz com meu autoengano, arrumei-me mais, e saí para o compromisso dominical.

Ai, lembrei-me de uma crônica que li no jornal “Pampulha”, de Belo Horizonte, em que a autora falou do ocrinho. Ela falou ocrinho mesmo. Trata-se daqueles óculos pequeninos que começamos a usar, quando não conseguimos enxergar de perto e já virou costume as pessoas brincarem que não enxergam porque os braços ficaram curtos. Ela falava de uma amiga que não revelava de jeito nenhum que usava aqueles tais ocrinhos, porque denunciaria sua idade. Uma interessante crônica e ela tem razão. As mulheres, principalmente, preocupam-se muito com a idade. Nossa sociedade é muito cruel com as mulheres. Elas não podem ter cabelos brancos, não podem usar ocrinhos, não podem ser gordas, ou melhor, têm que ter corpo de modelo (algum tempo atrás, precisava ter corpo de miss). Ao contrário, homens com cabelos brancos é charme, com óculos ninguém se incomoda, pessoa alguma lhe cobra corpo de bailarino e por aí vai.

Nós, por nossa vez, colaboramos para que essa escravidão continue. Aceitamos que temos que pintar os cabelos tão logo uma mechazinha teima em aparecer entre os fios escuros ou loiros. E quando alguma mulher resolve ficar de cabelos brancos, as amigas implicam tanto que ela se rende e lá se vai sua autonomia. Passa a viver segundo o que querem os outros e o que pensam dela.

Quanto ao tal ocrinho, nem posso dizer isso, porque foi a maior felicidade o dia em que usei óculos e pude ver tudo bonito e perfeito novamente. E eu nem tinha 40 anos, mas a vista degenerou-se muito cedo e eu não conseguia ler direito os jornais. Estava perdendo o gosto pela leitura.  Daí a minha alegria. Só tive dificuldade quando necessitei usar as lentes para longe também. Foi um sofrimento. Não me adaptei aos óculos multifocais e o jeito foi colocar lentes de contato, uma maravilha da tecnologia. Estão cada vez melhores, portanto, uso-as sempre, muito feliz.

Mas quanto aos cabelos...Pinto-os sempre, preocupo-me com os fios rebeldes que teimam em embranquecer. Sou escrava da tintura, mas já estou me programando para a liberdade nesse item também. Mas me recuso a clarear os cabelos, isso recuso, mesmo. E digo que não quero ficar de uniforme, já que as velhas todas tem cabelo claro. Não há uma brincadeira que diz que mulheres não envelhecem, ficam loiras?

Hoje, procurando espelhos para tentar ver qual me mostrava um pouquinho, só um pouquinho, por favor, mais jovem, declamei baixinho, na maior tristeza, não nego, com Cecília e como Cecília:

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face?”

É isto, Cecília, vamos seguindo a vida alegre ou tristemente e não percebemos as mudanças que vão se acumulando no nosso corpo, nos nossos olhos, nos nossos cabelos, nos nossos ossos, enfim, na nossa face jovem que se perdeu no tempo, faz tempo.

E não há espelho que dê jeito. A menos que se especialize em autoengano e se busque sempre, como fiz hoje, mas só por hoje, prometo, um espelho no escurinho.

 
Maria Francisca – novembro de 2013.

A lua e o sorriso


Tinha uma lua no céu. Uma lua de nada. Fininha...

Um céu tão grande, tão azul e aquela luazinha lá no alto, sem qualquer estrela por perto. Reinava absoluta e solitária.  Tanto olhei que ela sorriu. Não acreditei. Olhei de novo. Certeza. Estava sorrindo. Fixei o olhar. Já não era a lua que sorria. Era Paulo Merçon. Um sorriso tranquilo, inocente. Parecia feliz. Eu gosto de lua. Estou sempre à procura de uma lua no céu. Poetas gostam de lua. Tanto gosta que “vê a lua que ninguém vê”. Deve ser por isso que Paulo estava sorrindo. Estava dentro da lua.

 Fiquei ali parada, esperando que dissesse algo. Silêncio. Só o sorriso. Parecia me provocar. Quem sabe ele declamaria um poema, daqueles lindos que tão bem sabe compor. Poderia ser “Som do crepúsculo”. E fui falando baixinho, na esperança que completasse: Imagine um poema que terminasse em eterno movimento, uma onda debruçada no mar, um giro estático. Nada. Iniciei outro: “Um espelho é polir de instante a rocha invisível do tempo”. Nada, ainda. Só o brilho, o sorriso e o silêncio.

Agora, o sorriso ficou triste. Por que, Paulo? Converse um pouco comigo, pedi. Nada de resposta. Silêncio total. Continuei olhando, esperando, mas o céu começou a escurecer e meus olhos foram se fechando.

De madrugada, acordo sobressaltada, corro à janela.

Nem lua, nem sorriso, nem Paulo.

Fiquei com saudades do poeta.

 
Maria Francisca – Gramado, 02 de maio de 2014.