sábado, 26 de abril de 2014

Há lua de vez em quando


Há lua de vez em quando...

 

Os grilos não cantam mais, diz Fernando Sabino, numa antiga crônica (e põe antiga nisso!) publicada em 1941.

Pois é. Hoje, não há grilos, nem vagalumes, nem lua, nem estrelas, nem barulho de mar. Tudo engolido pelos barulhos urbanos, pelas luzes artificiais. Fico sempre a pensar sobre isso. Acordava à noite e ficava ouvindo o barulho do mar, das ondas quebrando na areia. Ia à varanda, para ver as estrelas no céu. De madrugada, os passarinhos me acordavam. E isso não acontecia em 1941, não. É de pouco tempo: uns dez anos, no máximo. Construíram tanto prédio na Praia da Costa...

São tantos os carros que trafegam pelas ruas, que a Prefeitura teve que improvisar uma outra pista na beira das calçadas. E os carros com seus motoristas apressados, intransigentes ou inconsequentes, não sei bem, passam nessa pista como se ela tivesse sido construída para seu exclusivo deleite e disparam em alta velocidade, tirando o sossego das pessoas e cortando todos os barulhos que faz uma cidade ter aquele ar pacífico: grilos, passarinhos, ondas de mar. E as luzes que tentam proteger-nos dos perigos das cidades, tiram-nos o brilho das estrelas e da lua. Tiram-nos, também, a visão dos vagalumes (dos poemas de Fagundes Varela: “Quem és tu, pobre vivente, que vagas triste, sozinho, Que tens os raios da estrela, E as asas do passarinho? A noite é negra, raivosos os ventos sopram do sul. Não temes, doido, que apaguem a tua lanterna azul?”(...) ou aquele vagalume da fábula, que tanto brilhou que inflamou a ira invejosa da cobra).

Mas nós também temos culpa.  Com nossa pressa diária, querendo estar conectados com o mundo tecnológico, com ânsia de informação, esquecemo-nos até de olhar para o céu. Como disse o cientista Marcelo Gleiser, para a maioria das pessoas a natureza é um conceito, algo que existe lá longe, nas fotos que vemos nas revistas, ou nos vídeos do YouTube e especiais de TV.

Se, de um lado, as cidades modernas atrapalham, de outro, o homem moderno, com celular de última geração à mão, conecta-se com o mundo e desconecta-se da natureza.

Mas hoje, privilégio meu, tudo pareceu mudar, pelo menos num ponto.  Não é que, insone, levantei-me de madrugada, com intenção de ler alguma coisa, e vi enorme clarão entrando pela janela do escritório? Pensei: algum vizinho, insone também, acendeu as luzes e elas refletem aqui. Mas de qual edifício iria “brotar” essa luz tão intensa? Parecia sair de perto, tão forte.

Fiquei até com um pouco de medo. Que será isso, meu Deus? De onde vem essa luz? Fui chegando de mansinho, devagar, espiando de longe, fui entrando no escritório e no “domínio” da luz, e vi. Vinha do céu. Do céu. Nem dava para acreditar. Uma enorme lua espalhava luz por sobre os prédios e entrava pela minha janela, iluminando tudo.

 Bendita seja, murmurei. E fiquei parada. Como que extasiada por aquela maravilha da natureza. Ou seria de Deus? Dá na mesma, pensei, se a natureza é de Deus. (“No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: ‘haja luz’ e houve luz. Deus viu que a luz era boa e separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz dia e às trevas ‘noite’”. Gn 1, 1-5).

Olhei a lua e pensei: Será que, depois, Deus teve pena da noite que criou e resolveu dar-lhe lua e estrelas para que pudesse, de vez em quando, deixar de ser meramente trevas? Só de vez em quando, para ela não ficar triste, é certo, porque lua clara temos por pouco tempo. E não estou falando das cidades agora, não. Em qualquer lugar há as fases da lua. Há eclipses, há nuvens escuras que cortam o brilho da lua. Cortam as estrelas, escondendo-as na sua espessura malvada...

E por falar nisso, cadê a lua?

Há apenas uma grossa nuvem passeando faceira no céu...

Maria Francisca - novembro de 2013.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

É A VOVÓ!



Hoje (31/01/2014), andando pelo calçadão da Praia de Itaparica, vi um senhor com uma menininha, tomando banho de chuveiro, naqueles chuveirões de praia, que jorram um aguaceiro e faz a alegria da criançada.

Ela ria e enfiava a cabecinha debaixo do chuveiro. Eu que não posso ver criança que vou logo procurando falar alguma coisa, parei e disse: Que delícia, hein, fofinha? Que banho gostoso! Ela me olhou, sorriu e tornou e se enfiar debaixo do chuveiro. O homem, que tinha a criança ao colo, tão logo recomecei a andar, disse para a menininha, bem alto: É a vovó. Dá thau para ela. Eu, alegremente, parei, olhei de novo e fiz o gesto de adeus para a criança e disse: lindinha!

No momento, não pensei nada demais, porque tenho cinco netos e adoro quando alguma criança me chama de vovó.  Depois, fui achando aquilo interessante, porque as pessoas, normalmente, não falam para as crianças que as pessoas estranhas que encontram são avós, mas apenas tias, porque têm medo de ofender, já que mulheres, em geral, não gostam de parecer velhas. E o tom de voz do homem me incomodou.

Fiquei matutando e aí, me toquei.  O tom era irônico, ou, talvez, pedante.  Ele deve ter pensado que brinquei com a criança para me aproximar dele. Bingo: foi isso. Ô vaidade besta!

Aí, comecei a rir sozinha, porque me lembrei de três episódios parecidos, na ficção. Um, foi no filme Julgamento em Nuremberg, quando a personagem Dan Haywood (Juiz-chefe do Tribunal), na atuação de Spencer Tracy, chegou a uma lanchonete russa e viu uma moça bonita tomando algo. Aproximou-se dela, todo faceiro, conversaram um pouco, ela sorria. Quando saiu, disse-lhe alguma coisa. Como ele não entendeu a língua, perguntou à garçonete: O que ela disse? A moça respondeu: Ela disse thau, Vovô!...

Outro episódio é de uma crônica do Rubem Alves. Diz ele que estava no trem, em pé e olhava pra lá e pra cá, como todo escritor, porque fica a observar tudo e reparou que uma bela moça, que estava sentada, também lançava olhares como ele, por todos os lados. Num momento, seus olhares se cruzaram, a moça sorriu e ele ficou todo feliz. Momento seguinte, decepção, a moça levantou-se para dar-lhe o lugar.

E, por último, o conhecido Tio Sukita, que deve ter se inspirado no Rubem ou no filme Nuremberg. Uma moça bonita entra num elevador, tomando um refrigerante e encontra alí um homem de meia idade, que fica tentando conquistar a menina, até que ela lhe diz: Tio, aperta o 21 para mim...

A diferença, meu senhor, é que estamos vivendo. Isso é real e não ficção. Eu estava prestando atenção apenas na criança... Não sei se você era bonito, feio, velho, ou novo e o meu sorriso para a criança, após ser chamada de vovó, deve ter-lhe mostrado isso.

Seria muito engraçado se eu, no alto dos meus 65 anos, ficasse por aí tentando conquistar homens, por meio de criancinhas graciosas...

Tomara que tenha acordado para sua idiotice.

Maria Francisca – 31/01/2014.

POEMA : DESAFIO


 
EUS em conflito,
Ego sinistro.
Tal Drumond, digo
E até grito:
E, agora, mulher?

 A esposa passeia
A mãe em pranto
A professora deserta
O futuro incerto.
E, agora, mulher?

 Humildade viaja
Vaidade invade
Loucura acode
Verdade foge
Alegria irradia
Ilusão parodia.
E, agora?

Quer fugir?
Fugir, como?
No trem há perigo,
No busu nem lhe digo,
Você não tem carro,
O sinal está fechado,
Sua roupa é curta,
Você não tem burca.
E, agora?

 A você que toca
A você que canta
A você que dança
A você que escreve,
A você que julga.
A você que pensa.
E, agora?

 Parada aí?
A banda passou,
O tempo passando,
A chuva chegando,
A casa alagando,
O dia morrendo,
A noite é negra.
Por um fio,
A vida apaga.

 Acorda, mulher!

 

Maria Francisca – dezembro/2013.

 

 

 

domingo, 13 de abril de 2014

A medida do homem



Esses dias, conversando com Daniel, o neto de sete anos, ele me contava as peripécias de um personagem de desenho animado, cujo nome esqueci, e terminou a história afirmando que o personagem é imortal. Eu disse: Não há ninguém imortal, Dani. Só no mundo da imaginação. Ele respondeu: Há, sim, Jesus.  E continuou: Todos que morrem ficam imortais. Quem lhe disse isso? Eu mesmo, respondeu. Ele sempre fala dessa forma, quando diz algo inusitado e eu faço essa pergunta. Deve ter escutado alguma conversa e fez as deduções, esperto como ele é, pensei.

Continuamos a discussão sobre imortalidade, procurando lembrar os ancestrais já falecidos e tornados imortais.
Depois, fiquei pensando muito sobre aquela conversa e achando interessante interpretar a morte como caminho para a imortalidade. Bem verdade que é um paradoxo, mas é também um consolo. Vai ao encontro da ideia de ressurreição, tal qual ensinam as escrituras. É nossa crença e nossa esperança como cristãos.

Incrível, mas um dia após ouvir essa bela lição do neto, surpreendi-me com a leitura de uma citação de Paulo, falando em ressurreição, justamente como disse o Daniel. Podemos ver em I Coríntios, 15,54: Quando este corpo corruptível estiver revestido da incorruptibilidade, e quando este corpo mortal estiver revestido da imortalidade, então se cumprirá a palavra da Escritura.

Será que, por crermos na ressurreição, aceitamos a morte?
Há alguns anos, eu, adoentada, aborrecida, pensava na morte e ficava muito triste, principalmente após a perda inesperada de um amigo.  Aí, sonhei que havia morrido. Via-me ali no caixão e, ao redor, muita gente que olhava, olhava, ninguém falava nada, ao menos se eu era uma boa pessoa, essas coisas que falam num velório. Ninguém chorava. Eu, cadáver ali presente e vendo tudo, já intrigada com aquilo, mas ficava quietinha no caixão, como deve ficar um defunto. De repente, aparece ao meu lado uma menina e começa e esfregar o olho, que lacrimejava. Alguém lhe pergunta algo bem baixinho, talvez se me conhecia. Escutei bem a resposta: Meus olhos estão ardendo, por causa da fumaça das velas. Eu, defunto, fiquei com muita raiva. Como é que uma pessoa como eu, importante, pensei, morre e ninguém se importa? E aí, o ego soberbo falou mais alto. Eu, mesmo defunto, levantei-me do caixão e fui embora, resmungando: Já que ninguém chora, não vou morrer. Só Freud explica. Ou não explica?

Por meio desse sonho, conclui: o que nos move e amedronta, ao mesmo tempo, é a certeza do esquecimento das pessoas. A morte é um insulto ao eu. A vida continua mesmo sem mim. Mas, como disse Mathias Jung, a vida já não existia antes de mim? Outros afetos surgem, outros interesses aparecem e os mortos são mortos, devem ser deixados em paz. Isso é importante para nossa saúde, porque a vida continua apesar de tudo. Quem age de outra forma, acaba adoecendo, como a personagem Maureen, de Rachel Joyce, que demorou 20 anos para, efetivamente, enterrar o filho David que falecera repentinamente. Falava com ele, telefonava-lhe reclamava da saudade, pedia a visita do jovem, como se o filho ainda vivesse. A duras penas, conseguiu desvencilhar-se daquele fantasma e voltou a viver normalmente. Enterrar nossos mortos não impede nossas saudades das pessoas queridas que estão no Infinito, mas, com a consciência de que ficaram imortais e estão bem distante de nós, os que teimamos  em permanecer mortais. Com a morte inicia-se uma nova era. Para trás estão os momentos vividos que não voltam mais. As possibilidades de recomeço findaram.
O único ser consciente de sua finitude é o homem. Hoje, quando penso na morte, é sempre com este autoalerta: somos finitos. Essa ideia conduz ao desejo de fazer tudo que é necessário, antes que a “foicinha” nos pegue, procurando lembrar sempre este mundo como prenúncio da vida eterna. Então, que procuremos torná-lo melhor.

 O problema é querermos aventura, sempre, mesmo os menos jovens, porque é quase uma obrigação fazer coisas estupendas e exibir-se. Se entendermos, entretanto, a pura aventura como uma eterna tentação, talvez possamos pensar na outra vida como mais consistente e mais verdadeira, no dizer de Luiz Paulo Horta, jornalista e escritor, recentemente falecido. Pensando nisso, apesar de apegada à vida, senti-me consolada, vendo, no caixão, um amigo muito querido, meu compadre Eliezer. A vida dele foi um exemplo. Não se deixou levar por simples aventuras e, com certeza, seu corpo tornou-se incorruptível e reside imortal entre os imortais.

É certo que consola, e muito, crer na ressurreição e na imortalidade, mas ser apegado à vida é da nossa natureza. Quem não quer viver? Quem quer ser “imortal”, na linguagem do Daniel que, agora descobri ser a linguagem bíblica? É como disse João Cabral de Melo Neto, num belo poema:
“Podeis aprender que o homem
É sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
Não é a morte, mas a vida”.

 
Maria Francisca – alvorecer de 2014.