domingo, 22 de junho de 2014

CAUSOS – 1º DA SÉRIE



                                                       AQUELA JUÍZA É O CÃO

Na Justiça do Trabalho, como nos Juizados Especiais,  quando o autor não comparece à primeira audiência, o processo é arquivado.

Corria o ano de 1994. Antes da lei 11.280/2006 que deu nova redação ao inciso II do art. 253 do CPC quando acontecia situação de arquivamento, o novo processo ajuizado era sorteado e poderia cair em qualquer Junta ou Vara. Então, era possível escolher-se o juiz, ou melhor, era possível, pelo menos, recusar, por vias transversas, um juiz que não se desejasse para atuar no seu processo. Era só deixar arquivar e esperar novo sorteio, quando entrasse com novo pedido.

Eu era presidente da então da 3ª Junta de Conciliação e Julgamento de Vitória, mas como antes trabalhava em Linhares e logo que vim para Vitória, passei a ser sistematicamente convocada para atuar no Tribunal, muitos advogados só me conheciam de nome e isso provocava situações engraçadas.

Um dia, estava eu no elevador bem lotado e um advogado conversava com uma senhora, que entendi ser sua cliente. E dizia: Quando chegarmos ao andar da Junta, entro na sala de audiência, para ver quem é o juiz que está atuando, porque se for a juíza Maristela*, faço um sinal e você se manda, porque aquela mulher é o cão.  Eu ali escutando e com vontade de rir, premeditando o assombro que causaria a ele, quando descobrisse quem eu era.

Aí, o elevador parou num andar, um advogado me viu e me gritou de lá: Dra. Francisca, que prazer vê-la aqui! O coitado do advogado que acabara de falar aquele disparate, nem olhou pra trás. Saiu atropelando todo o mundo e se safou porta afora para se livrar de olhar para mim.

Acredito que nunca mais ele vai falar qualquer coisa em elevador.

* Nome fictício.

 

 

Tem dono!

 
Céu encoberto por uma nuvem escura e o frio se faz sentir. Olho pela janela e vejo uma chuva fina já começando a cair, o que afasta a minha coragem para a caminhada matinal. Chuva não me amedronta, mas frio, sim. Então, já vou procurando colocar a bicicleta ergométrica na frente da televisão, para que eu possa me exercitar, sem estresse, uma vez que exercício aeróbico monótono não é comigo. Tenho que me distrair, enquanto pedalo.

Ligo a televisão e sintonizo no programa da Ana Maria Braga. Começo a pedalar e surge um quadro sobre uma mulher que deseja ser poderosa. Pensei: Opa! Quero ser poderosa também. Decepcionei-me, entretanto. O poder a que se referia a apresentadora era do ter. Roupas bonitas, cabelos cortados e de cor diferente. O poder de modificar-se, arriscar-se, mas apenas em relação à aparência. Quis ver o rumo daquela história e fui assistindo. A moça sendo acompanhada para compras. No cabelereiro, sendo instruída para arrumar o cabelo, maquiar-se, ganhando brindes da Avon, para se embelezar mais, carregando inúmeras sacolas de lojas e o final apoteótico: a mulher desfilando com roupas novas, cabelo cortado, bem cuidada e maquiada, à altura do título de poderosa. O marido da mais nova poderosa da TV disse ao Louro José: Ela é muito bonita e ficou mais bonita ainda, não é? Mas tire o olho, porque esta já tem dono.

Aquela palavrinha “dono” não me caiu bem. Incomodou-me aquela resposta do marido. A palavra empacou na minha cabeça. E, teimosa e reincidentemente, batia na trave.

Acabei meu exercício, a chuva caia agora copiosamente, o que me impedia de sair para as providências que desejava tomar naquele dia. Então, fui ler os jornais e, como sempre, muita notícia de violência contra as mulheres. Um companheiro havia dado três tiros na companheira, um outro, após bater bastante na mulher, trancou-a no quarto, mas ela conseguir passar um bilhete por baixo da porta e pediu socorro, outro, ainda, deu facadas na ex-mulher e, depois, ainda chorava diante dos repórteres.  E muitos outros casos estavam ali estampados. O jornal “SBT Brasil” noticiou (02/10/2013) que a cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil.

A ficha caiu. O problema é a palavra “dono”. O marido da poderosa, com certeza, nem pensou nisso quando proferiu a palavra, mas é isso que está na cabeça dos machistas, por mais que os tempos mudem, que as mulheres lutem por igualdade e consigam vencer nalgumas áreas. Continuam sendo propriedade dos maridos, dos companheiros, dos machos, enfim. Eu costumo brincar, dizendo que as mulheres nunca são livres. Quando estão solteiras, morando com a família, o pai toma conta como um leão; quando se casam o marido vigia até um espirro, quando envelhece, o filho macho toma conta. Eu, em verdade, falava isso há algum tempo, mas tudo foi mudando, minha geração fez tanta revolução, o feminismo avançou e me esqueci disso.

Uma amiga, que era muito independente, contou um caso interessante que aconteceu, com ela, depois de anos e anos de casamento. Ela estava meio pensativa, aborrecida com alguma coisa e calada, sentada num canto. O marido olhou-a e perguntou-lhe: Em que está pensando? Ela, aborrecida que estava, respondeu, raivosa: Em nada. Você já tomou conta do meu corpo, não vai tomar conta do meu espírito também não, viu?  Ela mesma achou graça daquela observação boba que fez e começou a rir. Ambos riram e o aborrecimento foi-se, mas demonstra, como nós, mulheres, ainda estamos sujeitas a essas cobranças, umas mais, outras menos. Liberdade para sermos o que queremos ser muito poucas mulheres conseguem. Em primeiro lugar, está a pretensão do companheiro, seu sucesso, sua carreira e ai daquela que não quiser segui-lo. Receberá todas as reprimendas da sociedade burguesa, conservadora e machista.

Mas o pior, mesmo, é a violência moral e física. Essa questão ainda não mudou muito, não. Ainda há aqueles que subjugam de tal forma a companheira que ela perde a subjetividade e mergulha numa dependência afetiva tal que, embora desrespeitada moral ou fisicamente, apega-se de tal forma ao agressor, que não consegue desvencilhar-se, mesmo com todo o sofrimento por que passa. O egoísmo travestido de amor, primeiro conquista, seduz, para, depois, usar a pessoa seduzida como se usa um objeto.

 Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, Eleonora Menicucci, Ministra da Secretaria Especial de Política para Mulheres afirma que a lei Maria da penha é um sucesso. A jornalista demonstra e a Ministra sabe disso, que muitos criticam a lei e sua inutilidade, mostrando que homicídios contra mulheres continuam da mesma forma, com o mesmo índice. Ela contesta a crítica e diz o seguinte: “Temos uma cultura patriarcal muito forte, da posse do corpo da mulher. As mulheres tinham dificuldade de romper esse ciclo de violência porque não tinham a porta de saída, que é a autonomia econômica, a possibilidade de entrar no mercado de trabalho. Agora elas têm, e têm também o aparato legal para combater a violência. Mas não se muda uma mentalidade de quatro séculos em sete anos. A lei não faz milagre. Mas a Maria da Penha é um "chutezinho" para o começo do fim da impunidade”.  

Se é só um “chutezinho”, como pode ser um sucesso?

Já havia encerrado esta crônica quando leio no “A Gazeta”( 04/04/2014) um artigo de Marlusse Daher, sob o título “Ainda uma falácia”, justamente para falar da “famosa” lei Maria da Penha que, segundo a autora, não trouxe qualquer novidade, “botou a boca no trombone, mas o trombone não soa, lá onde mora Maria de Qualquer Santa, que mora com os filhos, que é adepta da economia solidária”...” e teve sua casa invadida pelo ex-marido, espancada por ele, viu os filhos terem igual sorte e ainda debochar de todos.”

Pois é. A Lei Maria da Penha aí está, delegacias da mulher foram instaladas, o famoso botão do pânico foi criado e alardeado por jornais, revistas, televisão. Até ganhou o prêmio Inovare da Associação dos Magistrados Brasileiros. A violência continua, entretanto. O Brasil do imaginário, de leis bonitas, desconectado do Brasil real, ainda perturba nosso sossego, não sabemos por quanto tempo.

Pelo menos no que diz respeito à igualdade, em que pesem as conquistas femininas, muito homem ainda continua agindo como se fosse dono da mulher. Verdade incontestável.

Ô, sina!

Maria Francisca – outubro de 2013.

 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

O espelho, a face e os cabelos


O espelho, a face e os cabelos.

 
Hoje fiquei um tempão pensando na Cecília Meireles. O que, aliás, não é novidade alguma, porque, com ela, comecei a gostar de poesia, recitando: “Troc…  troc…  troc…  troc…ligeirinhos, ligeirinhos, troc…  troc…  troc…  troc…vão cantando os tamanquinhos…” Para completar, a bela Cecília é minha patrona na Academia de Letras de Vila Velha. 

Hoje, pensei mais, porque estava me achando horrível. Meu rosto, meus cabelos, tudo feio. Ia num espelho, credo! Ia noutro, credo! Eu estava a ponto de achar, ao contrário de Narciso, feio o espelho. Até que achei um daqueles pequenos, meio no escurinho, onde fiquei menos feia e me conformei, aliás, fiquei feliz com meu autoengano, arrumei-me mais, e saí para o compromisso dominical.

Ai, lembrei-me de uma crônica que li no jornal “Pampulha”, de Belo Horizonte, em que a autora falou do ocrinho. Ela falou ocrinho mesmo. Trata-se daqueles óculos pequeninos que começamos a usar, quando não conseguimos enxergar de perto e já virou costume as pessoas brincarem que não enxergam porque os braços ficaram curtos. Ela falava de uma amiga que não revelava de jeito nenhum que usava aqueles tais ocrinhos, porque denunciaria sua idade. Uma interessante crônica e ela tem razão. As mulheres, principalmente, preocupam-se muito com a idade. Nossa sociedade é muito cruel com as mulheres. Elas não podem ter cabelos brancos, não podem usar ocrinhos, não podem ser gordas, ou melhor, têm que ter corpo de modelo (algum tempo atrás, precisava ter corpo de miss). Ao contrário, homens com cabelos brancos é charme, com óculos ninguém se incomoda, pessoa alguma lhe cobra corpo de bailarino e por aí vai.

Nós, por nossa vez, colaboramos para que essa escravidão continue. Aceitamos que temos que pintar os cabelos tão logo uma mechazinha teima em aparecer entre os fios escuros ou loiros. E quando alguma mulher resolve ficar de cabelos brancos, as amigas implicam tanto que ela se rende e lá se vai sua autonomia. Passa a viver segundo o que querem os outros e o que pensam dela.

Quanto ao tal ocrinho, nem posso dizer isso, porque foi a maior felicidade o dia em que usei óculos e pude ver tudo bonito e perfeito novamente. E eu nem tinha 40 anos, mas a vista degenerou-se muito cedo e eu não conseguia ler direito os jornais. Estava perdendo o gosto pela leitura.  Daí a minha alegria. Só tive dificuldade quando necessitei usar as lentes para longe também. Foi um sofrimento. Não me adaptei aos óculos multifocais e o jeito foi colocar lentes de contato, uma maravilha da tecnologia. Estão cada vez melhores, portanto, uso-as sempre, muito feliz.

Mas quanto aos cabelos...Pinto-os sempre, preocupo-me com os fios rebeldes que teimam em embranquecer. Sou escrava da tintura, mas já estou me programando para a liberdade nesse item também. Mas me recuso a clarear os cabelos, isso recuso, mesmo. E digo que não quero ficar de uniforme, já que as velhas todas tem cabelo claro. Não há uma brincadeira que diz que mulheres não envelhecem, ficam loiras?

Hoje, procurando espelhos para tentar ver qual me mostrava um pouquinho, só um pouquinho, por favor, mais jovem, declamei baixinho, na maior tristeza, não nego, com Cecília e como Cecília:

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face?”

É isto, Cecília, vamos seguindo a vida alegre ou tristemente e não percebemos as mudanças que vão se acumulando no nosso corpo, nos nossos olhos, nos nossos cabelos, nos nossos ossos, enfim, na nossa face jovem que se perdeu no tempo, faz tempo.

E não há espelho que dê jeito. A menos que se especialize em autoengano e se busque sempre, como fiz hoje, mas só por hoje, prometo, um espelho no escurinho.

 
Maria Francisca – novembro de 2013.

A lua e o sorriso


Tinha uma lua no céu. Uma lua de nada. Fininha...

Um céu tão grande, tão azul e aquela luazinha lá no alto, sem qualquer estrela por perto. Reinava absoluta e solitária.  Tanto olhei que ela sorriu. Não acreditei. Olhei de novo. Certeza. Estava sorrindo. Fixei o olhar. Já não era a lua que sorria. Era Paulo Merçon. Um sorriso tranquilo, inocente. Parecia feliz. Eu gosto de lua. Estou sempre à procura de uma lua no céu. Poetas gostam de lua. Tanto gosta que “vê a lua que ninguém vê”. Deve ser por isso que Paulo estava sorrindo. Estava dentro da lua.

 Fiquei ali parada, esperando que dissesse algo. Silêncio. Só o sorriso. Parecia me provocar. Quem sabe ele declamaria um poema, daqueles lindos que tão bem sabe compor. Poderia ser “Som do crepúsculo”. E fui falando baixinho, na esperança que completasse: Imagine um poema que terminasse em eterno movimento, uma onda debruçada no mar, um giro estático. Nada. Iniciei outro: “Um espelho é polir de instante a rocha invisível do tempo”. Nada, ainda. Só o brilho, o sorriso e o silêncio.

Agora, o sorriso ficou triste. Por que, Paulo? Converse um pouco comigo, pedi. Nada de resposta. Silêncio total. Continuei olhando, esperando, mas o céu começou a escurecer e meus olhos foram se fechando.

De madrugada, acordo sobressaltada, corro à janela.

Nem lua, nem sorriso, nem Paulo.

Fiquei com saudades do poeta.

 
Maria Francisca – Gramado, 02 de maio de 2014.