Chego ao consultório do geriatra, tiro a senha e fico ali como boba, de olho naquele monitor, onde se visualizam os números. Parece congelado. A minha senha é 101, mas a 96 não arreda pé do vídeo. Olho, olho, e nada. É o bastante para embaralhar tudo na minha cabeça e começar a viagem para o mundo da divagação.
Escuto uma voz que parece vir de muito longe: 101! 101! Uma senhora, próxima diz: Não é a sua?
Hã? Levanto-me apressada e chego perto da mesa da atendente. Vou respondendo automaticamente às perguntas costumeiras: endereço, telefone etc etc.
Profissão!
Profissão! Hã? Mulher Maravilha! Ops, desculpe: prendas domésticas. A
moça ri, disfarçadamente, e repete baixinho balançando a cabeça, naquele
característico gesto de incredulidade ou de desprezo, sabe-se lá: Prendas domésticas... Sem me olhar, diz: Agora
é só esperar.
Acho sempre engraçada
esta frase: “Só esperar”. Esse “só” quer dizer o quê, mesmo? Que é pouco? Que
nada! Lá fiquei mofando naquela cadeira por um bom tempo, que não medi, porque
me pus a rir, sozinha, raciocinando (meditando, ou nas alturas...) sobre a
minha profissão: Prendas domésticas...
Mulher que não trabalha
fora, hoje, está fora... literalmente, para usar expressão da moda (todos dizem
“literalmente”, mesmo quando a questão
não é literal). Fora do mundo, fora dos círculos de conversa, fora da vida,
enfim. É isso que pensam as outras mulheres. Ela própria, a dona de casa, acaba
se sentindo assim. É como se a pessoa fosse inútil.
Pois é, dona de casa
bissexta, resolvi dizer, naquele momento, que era de prendas domésticas,
eufemismo que encontrei na hora, usado há muitos anos e que sempre detestei.
Aliás, gosto das palavras exatas. Por exemplo: Velho. Por que velho tem que ser
terceira idade, melhor idade? É feio ser velho? Deixa-se de ser velho quando se
diz diferente?
E vi, mais uma vez, que
ser dona de casa não é fácil e eu não tenho as tais prendas domésticas, de
jeito algum.. Resolvo tocar piano, lembro: Ai,
a máquina parou de funcionar. Será
que a lavagem acabou? Levanto-me e vou ver. E já está na hora de fazer
almoço, porque o neto chega do Inglês e tem que almoçar rápido para ir pra
escola. Coloco a carne para assar e vou cortar verdura pra salada. Distraio-me,
com as verduras, até que sinto o cheiro de fumaça: Ai, meu Deus, a carne está queimando. O forno estava muito quente...Vou tirar do forno e, aí, queimo os
dedos na pressa. Tarde demais... E as
plantas que ainda não foram molhadas? E minha palestra que não terminei de
preparar? E a barra da calça do neto que ainda não fiz? E a crônica que não
terminei? E a reunião do TJC? Afe!
Tenho quer fazer outra
carne depressa. Não, vou fazer ovos mexidos.
Mas o arroz está precisando de um pouco mais de água. O telefone toca e o
interfone também. Corro a atender. Vizinha querendo subir para falar de algo.
Peço pra deixar pra depois. O arroz já está queimando também. Chi! Estou atrasada.
E assim, passo o dia,
correndo pra lá e pra cá.
Então, tenho prendas
domésticas? Ou sou “Mulher Maravilha”?
Tentando fazer tudo e
nada fazendo direito?
Que nada, sou, mesmo, é
uma abusada!
Maria Francisca –
01.07.2015, após receber a notícia de que não haveria aula de música, resolve
tocar piano e não consegue porque há muitas tarefas domésticas pra realizar.
musica
ResponderExcluir