Céu encoberto por uma
nuvem escura e o frio se faz sentir. Olho pela janela e vejo uma chuva fina já
começando a cair, o que afasta a minha coragem para a caminhada matinal. Chuva
não me amedronta, mas frio, sim. Então, já vou procurando colocar a bicicleta
ergométrica na frente da televisão, para que eu possa me exercitar, sem
estresse, uma vez que exercício aeróbico monótono não é comigo. Tenho que me
distrair, enquanto pedalo.
Ligo a televisão e sintonizo
no programa da Ana Maria Braga. Começo a pedalar e surge um quadro sobre uma
mulher que deseja ser poderosa. Pensei: Opa! Quero ser poderosa também.
Decepcionei-me, entretanto. O poder a que se referia a apresentadora era do
ter. Roupas bonitas, cabelos cortados e de cor diferente. O poder de modificar-se,
arriscar-se, mas apenas em relação à aparência. Quis ver o rumo daquela
história e fui assistindo. A moça sendo acompanhada para compras. No
cabelereiro, sendo instruída para arrumar o cabelo, maquiar-se, ganhando
brindes da Avon, para se embelezar mais, carregando inúmeras sacolas de lojas e
o final apoteótico: a mulher desfilando com roupas novas, cabelo cortado, bem
cuidada e maquiada, à altura do título de poderosa. O marido da mais nova
poderosa da TV disse ao Louro José: Ela é
muito bonita e ficou mais bonita ainda, não é? Mas tire o olho, porque esta já
tem dono.
Aquela palavrinha
“dono” não me caiu bem. Incomodou-me aquela resposta do marido. A palavra empacou
na minha cabeça. E, teimosa e reincidentemente, batia na trave.
Acabei meu exercício, a
chuva caia agora copiosamente, o que me impedia de sair para as providências
que desejava tomar naquele dia. Então, fui ler os jornais e, como sempre, muita
notícia de violência contra as mulheres. Um companheiro havia dado três tiros
na companheira, um outro, após bater bastante na mulher, trancou-a no quarto,
mas ela conseguir passar um bilhete por baixo da porta e pediu socorro, outro,
ainda, deu facadas na ex-mulher e, depois, ainda chorava diante dos repórteres. E muitos outros casos estavam ali estampados.
O jornal “SBT Brasil” noticiou (02/10/2013) que a cada 15 segundos uma mulher é
espancada no Brasil.
A ficha caiu. O
problema é a palavra “dono”. O marido da poderosa, com certeza, nem pensou
nisso quando proferiu a palavra, mas é isso que está na cabeça dos machistas,
por mais que os tempos mudem, que as mulheres lutem por igualdade e consigam
vencer nalgumas áreas. Continuam sendo propriedade dos maridos, dos
companheiros, dos machos, enfim. Eu costumo brincar, dizendo que as mulheres
nunca são livres. Quando estão solteiras, morando com a família, o pai toma
conta como um leão; quando se casam o marido vigia até um espirro, quando
envelhece, o filho macho toma conta. Eu, em verdade, falava isso há algum tempo,
mas tudo foi mudando, minha geração fez tanta revolução, o feminismo avançou e
me esqueci disso.
Uma amiga, que era
muito independente, contou um caso interessante que aconteceu, com ela, depois
de anos e anos de casamento. Ela estava meio pensativa, aborrecida com alguma
coisa e calada, sentada num canto. O marido olhou-a e perguntou-lhe: Em que está pensando? Ela, aborrecida
que estava, respondeu, raivosa: Em nada.
Você já tomou conta do meu corpo, não vai tomar conta do meu espírito também
não, viu? Ela mesma achou graça
daquela observação boba que fez e começou a rir. Ambos riram e o aborrecimento
foi-se, mas demonstra, como nós, mulheres, ainda estamos sujeitas a essas
cobranças, umas mais, outras menos. Liberdade para sermos o que queremos ser
muito poucas mulheres conseguem. Em primeiro lugar, está a pretensão do
companheiro, seu sucesso, sua carreira e ai daquela que não quiser segui-lo.
Receberá todas as reprimendas da sociedade burguesa, conservadora e machista.
Mas o pior, mesmo, é a
violência moral e física. Essa questão ainda não mudou muito, não. Ainda há
aqueles que subjugam de tal forma a companheira que ela perde a subjetividade e
mergulha numa dependência afetiva tal que, embora desrespeitada moral ou
fisicamente, apega-se de tal forma ao agressor, que não consegue desvencilhar-se,
mesmo com todo o sofrimento por que passa. O egoísmo travestido de amor,
primeiro conquista, seduz, para, depois, usar a pessoa seduzida como se usa um
objeto.
Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, Eleonora
Menicucci, Ministra da Secretaria Especial de Política para Mulheres afirma que
a lei Maria da penha é um sucesso. A jornalista demonstra e a Ministra sabe
disso, que muitos criticam a lei e sua inutilidade, mostrando que homicídios
contra mulheres continuam da mesma forma, com o mesmo índice. Ela contesta a
crítica e diz o seguinte: “Temos uma cultura patriarcal muito forte, da posse
do corpo da mulher. As mulheres tinham dificuldade de romper esse ciclo de
violência porque não tinham a porta de saída, que é a autonomia econômica, a
possibilidade de entrar no mercado de trabalho. Agora elas têm, e têm também o
aparato legal para combater a violência. Mas não se muda uma mentalidade de
quatro séculos em sete anos. A lei não faz milagre. Mas a Maria da Penha é um
"chutezinho" para o começo do fim da impunidade”.
Se é só um “chutezinho”, como
pode ser um sucesso?
Já havia encerrado esta crônica
quando leio no “A Gazeta”( 04/04/2014) um artigo de Marlusse Daher, sob o
título “Ainda uma falácia”, justamente para falar da “famosa” lei Maria da Penha
que, segundo a autora, não trouxe qualquer novidade, “botou a boca no trombone,
mas o trombone não soa, lá onde mora Maria de Qualquer Santa, que mora com os
filhos, que é adepta da economia solidária”...” e teve sua casa invadida pelo
ex-marido, espancada por ele, viu os filhos terem igual sorte e ainda debochar
de todos.”
Pois é. A Lei Maria da
Penha aí está, delegacias da mulher foram instaladas, o famoso botão do pânico
foi criado e alardeado por jornais, revistas, televisão. Até ganhou o prêmio Inovare da Associação dos Magistrados
Brasileiros. A violência continua, entretanto. O Brasil do imaginário, de leis
bonitas, desconectado do Brasil real, ainda perturba nosso sossego, não sabemos
por quanto tempo.
Pelo menos no que diz
respeito à igualdade, em que pesem as conquistas femininas, muito homem ainda
continua agindo como se fosse dono da mulher. Verdade incontestável.
Ô, sina!
Maria Francisca –
outubro de 2013.